Meu nome é Jamila Rocha, sou piauiense, enfermeira, especialista em Cannabis Medicinal e especialista em dermatologia. Trabalhei durante alguns anos na assistência de enfermagem, em contato direto com pacientes de UTI. Em 2019, meu sobrinho foi diagnosticado com autismo. As medicações não faziam efeito nele e ainda o deixavam letárgico o dia todo. Comecei a procurar por novas terapias e encontrei estudos que demonstravam o potencial terapêutico da Cannabis para autistas. Aquilo era uma novidade pra mim. Depois de conversas com toda família, iniciamos o tratamento. Ele mudou totalmente seu comportamento e isso tem ajudado no seu desenvolvimento cognitivo e nas interações pessoais.
Me aprofundando, descobri que poderia ser efetivo para mim também, que sofria há 10 anos com crises de dores após cirurgia para descompressão das hérnias discais. De lá pra cá, nossa vida mudou. Saí do meu emprego e iniciei a pós-graduação em Cannabis Medicinal, além de fazer cursos complementares. Entrei na Indústria da Cannabis como representante de uma empresa estadunidense de medicamentos à base de Cannabis importados, que tem forte atuação no Brasil. Depois de cerca de dois meses fui recrutada pelo meu chefe para dar uma aula sobre a planta para todos os representantes da empresa. Hoje sou Consultora Técnica e parte do meu trabalho é justamente ensinar um pouco mais sobre Cannabis para representantes, médicas e médicos.
Panorama no Brasil
Atualmente no Brasil, médicos e dentistas podem prescrever Cannabis. Isso significa que qualquer pessoa que precisa pode receber tratamento com a planta. Apesar disso, segundo dados da ANVISA (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) menos de 1% da classe médica prescreveu Cannabis entre 2015 e 2020. Isso ocorre em boa parte porque uma parcela considerável desses profissionais da saúde, não sabem que são habilitados pela lei, a RDC 327 de 2019 feita pela ANVISA, para realizar a prescrição. Mas além disso, o problema maior está no desconhecimento em relação aos potenciais terapêuticos da planta.
Durante a formação em medicina, odontologia e outras áreas da saúde, alunas e alunos recebem pouca ou nenhuma informação acerca da Cannabis. Quem dirá sobre os canabinoides, terpenos, flavonoides e como eles atuam no Sistema Endocanabinóide, sistema descoberto nos anos 90 apesar do proibicionismo vigente na maior parte do mundo. O Sistema Endocanabinóide funciona através de receptores, o CB1 e CB2, que interagem com Fitocanabinóides, que são os Canabinoides presentes na Cannabis, como por exemplo THC, CBD, CBN, e com Endocanabinoides, que são os Canabinoides produzidos em nosso corpo, a Anandamida e 2-AG. Os Endocanabinoides são similares aos Fitocanabinoides da planta da Cannabis.
Esse sistema tem papel fundamental para manter a homeostase (equilíbrio) dos Sistemas Nervoso Central, Sistema Imunológico e Sistema Endocrino. A falta de contato com o tema por parte dos profissionais da saúde afasta pacientes que necessitam de medicação à base da planta para receberem o tratamento adequado. No meu período como representante, enfrentei muito desconhecimento e preconceito sobre tudo que tange o tema, como também sobre a legalidade na prescrição. Basta se informar para saber que a Cannabis funciona melhor do que outras medicações para algumas patologias, ou mesmo como terapia adjuvante em diversos tratamentos. Existem milhares de estudos científicos que embasam essa afirmação.
Democratização ao Acesso
Negligenciar o acesso a essa planta utilizada na medicina há milhares de anos é negligenciar o direito à vida e a qualidade de vida não só do paciente, mas também da família. Ou seja, a educação canábica é essencial para vencermos o preconceito e promover saúde e qualidade de vida para a população. Me refiro a população pois o que ocorre hoje é que pouquíssimos médicos do SUS (Sistema Único de Saúde), responsável por atender a maior parcela das pessoas, não são prescritores de Cannabis. Isso concentra a prescrição de Cannabis em médicos particulares especializados, que costumam cobrar valores altos, tornando o tratamento quase que exclusivo para a elite econômica.
Para além de democratizar o acesso a prescrição, temos como grande desafio a acessibilidade aos medicamentos. Hoje, seja via associações ou via importação, tratamentos à base da planta são uma realidade para poucos em um país no qual 56% das pessoas vivem sob insegurança alimentar. Para quem não tem condições financeiras, é possível realizar um processo de judicialização para o Estado custear o tratamento. Outro ponto que nos afasta ainda mais do cenário ideal, está no fato de que o tratamento com Cannabis é personalizado e não podemos nos contentar com uma gama pré definida de produtos importados autorizados pela ANVISA, mesmo sabendo que o que sobressai perante a alegação do limite de 0,3% de THC é a lei do ato médico, na qual o médico e quem define a melhor opção de concentração e quais canabinoides serão prescritos para cada paciente.
Desafios
Mas como encontrar o caminho para solucionar tudo isso? Ao meu ver, antes de mais nada, precisamos disseminar a educação sobre a planta. Isso qualifica o debate e consequentemente ocorrem avanços na regulamentação e democratização. Além disso, é essencial entender que a Indústria da Cannabis não tem nada a ver com Indústria farmacêutica. Para exemplificar rapidamente, os medicamentos vendidos como Cannabis da indústria farmacêutica são sintéticos, ou seja, os fármacos são provenientes de moléculas sintetizadas. Isso por si só afasta essa indústria da Indústria da Cannabis, que formula tudo com base na planta. Porém não significa que a indústria farmacêutica não tenha grande interesse econômico na Indústria da Cannabis.
Temos um longo caminho a percorrer como sociedade até que a Cannabis como forma de medicina seja amplamente aceita, disseminada e democratizada no nosso país. Nos últimos anos, talvez esse tenha sido um dos poucos avanços progressistas que tivemos. Apesar disso, ainda existe um movimento interno muito forte para separar Cannabis de Cannabis Medicinal. E isso é impossível, afinal a utilização dessa planta é de todo modo voltada ao bem-estar, independente do método de consumo
Fato é que tratamentos com Cannabis não são proibidos no Brasil, entretanto se trata de uma realidade para poucos, seja pela falta de conhecimento dos profissionais da saúde autorizados a prescrever, seja pelos altos custos das medicações. Portanto, é necessário que haja disseminação e acesso à educação para que nos organizemos como sociedade civil visando que tenhamos avanços significativos na legislação e na democratização da Cannabis.
Clique aqui para ver mais textos acerca do tema. Nós também produzimos produtos feitos de Cânhamo, que você pode conferir aqui!