Como sempre ressaltamos por aqui, com base em registros históricos, pesquisas e o próprio mercado atual, a Cannabis é uma planta muito relevante para o desenvolvimento e bem-estar da nossa sociedade.
Mas até o primeiro ato proibicionista a nível federal nos Estados Unidos, em 1937, e as medidas de criminalização e combate se espalharem pelo mundo, uma série de acontecimentos coordenados colaboraram para resultar na proibição. Com o esforço do capital, da mídia e principalmente do Estado, moldou-se a opinião pública, e com a grande influência política internacional estadunidense, o plantio, consumo e a venda da Cannabis se tornaram ilegais na maior parte do mundo. Uma série de aplicações industriais, terapêuticas e recreativas foram criminalizadas e deixadas de lado por quase um século. As próprias pesquisas, que poderiam muito bem colaborar com uma melhor utilização da planta, sofreram com o proibicionismo. Afinal, a dificuldade de receber autorização para se trabalhar com o tema retardou o desenvolvimento da área. Isso fez com que as pesquisas servissem exclusivamente para trazer qualquer tipo de resultado negativo em relação à planta.
Como se trata de uma série de acontecimentos relevantes para compreendermos a situação que vivemos hoje em quase todo o mundo, decidimos dividir a linha do tempo em pré-proibição e pós-proibição.
A história pré-proibição da Cannabis
1907 – Crise do Ópio
Para entender o proibicionismo, precisamos primeiro entender as origens da proibição do ópio. Em setembro de 1907, uma forte depressão econômica atingiu o Canadá. Imediatamente, a comunidade local, branca, realizou uma reunião em massa para discutir a crise. Ao invés de buscarem uma justificativa real para os problemas econômicos, criaram um clima de revolta contra a concorrência dos imigrantes chineses e japoneses. Um movimento de culpabilização de estrangeiros por problemas internos, comum até os dias de hoje. Com esse argumento infundado, canadenses causaram um verdadeiro caos, desordem e descumprimento de leis no país, agredindo asiáticos e destruindo seus estabelecimentos comerciais.
Posteriormente, quando parte da comunidade chinesa pediu indenização ao governo canadense pelo acontecido, descobriu-se que duas das lojas que pediram compensação serviam como esconderijo de ópio. Políticos da época aproveitaram essa brecha para fazer uma associação étnica com a substância e os chineses. Nesse contexto, Mackenzie King aprovou em 1908 a Lei Anti Ópio, que proibia a venda de ópio no Canadá. Porém, a aplicação da lei destinava-se aos chineses, haja visto que os farmacêuticos brancos podiam vender a mesma droga legalmente, denominando a como “ópio medicinal” nas farmácias. Chama a atenção essa questão de proibição para uns e liberação para outros. Assim como chama a atenção o conceito de utilizar nomes diferentes para diferenciar a mesma substância, sendo uma legal e a outra não.
Esse foi um dos acontecimentos que marcaram o início da transformação de uma sociedade que acreditava na medicina botânica e no poder das plantas para uma que tem fobia às drogas e tratamentos que fujam da medicina ocidental atual, baseada em fármacos industrializados. Nesse sentido, a proibição do ópio, fortaleceu um caminho para a proibição da Cannabis.
Holland, Julia, O LIVRO DA MACONHA
YEE, 2006
BOYD, 1991
1910 – Extinção das Escolas de Fitoterapia
Os Estados Unidos, no século XVII, incentivaram uma grande experimentação em todos os ramos da medicina. Nesse sentido, surgiram diversas faculdades e escolas com foco em fitoterapia, que é o estudo das plantas com propriedades medicinais e suas aplicações na cura de doenças. Entretanto, o processo de experimentação sofreu a interrupção de Abraham Flexner e sua influência.
Flexner foi um educador estadunidense e autor do famoso Relatório Flexner, que viria a ser uma das bases para a medicina ocidental. No relatório, recomendava-se que doadores da escola de medicina parassem de patrocinar as escolas de ervas, pois estas não tinham “laboratórios e textos” apropriados. Logo, esse relatório foi um dos principais influenciadores do declínio da medicina alternativa.
Tanto Flexner, quanto King (o canadense que falamos há pouco), foram trabalhar para a Rockefeller Foundation. Uma empresa americana bilionária altamente envolvida com a produção de petróleo, que serve de matéria prima para o plástico e a gasolina. Mas o que esse material e líquido têm em comum? E o que isso tem a ver com a proibição da maconha? Pois bem, como dito em outros artigos, a planta é uma concorrente natural desses derivados de petróleo. Pra você, é coincidência que dois grandes atores da proibição se beneficiaram de cargos em uma empresa que via sua operação em risco com a possibilidade da indústria da Cannabis se desenvolver ainda mais, reduzindo assim a necessidade de o mercado consumir seus produtos?
Holland, Julia, O LIVRO DA MACONHA
(FLEXNER, 1910)
(CHERNOW, 1998)
1914- As Primeiras Leis Contra a Ganja nos EUA
As primeiras leis contra a Cannabis aprovadas nos Estados Unidos foram em cidades que faziam fronteiras com o México. Sendo a primeira em El Paso, Texas, em 1914.
Para contextualizar, no país vizinho, o México, a Revolução Mexicana, que ocorreu de 1910 a 1917, casou uma forte onda de imigração de famílias rumo aos Estados Unidos. Nessa época, a Cannabis já tinha diversas formas de uso difundidas no país, entretanto o fumo não era uma das mais conhecidas.
Com a maioria dos imigrantes mexicanos exercendo trabalhos extremamente desgastantes, estes, seguindo um hábito antigo de seu país natal, fumavam sua erva nos poucos momentos de relaxamento que tinham. A população branca americana, insatisfeita com a onda de imigração vinda do país vizinho, encontrou ali algo que fugia do convencional e uma possibilidade de, se não proibir a existência dessas pessoas, fazer com que seus hábitos fossem proibidos.
Assim, com um forte apelo da mídia associando de forma mentirosa o uso de Cannabis à histórias de assassinatos, insanidades e loucuras sexuais, por exemplo, criou-se a associação étnica entre a planta e os mexicanos. História muito semelhante a dos chineses e o ópio no Canadá. O cenário perfeito para os proibicionistas estava montado e pronto para ser explorado pelo capital, a mídia e o Estado, como se pode ver na sequência.
Holland, Julia, O LIVRO DA MACONHA
(SLOMAN, 1979)
(MANN, 2001)
1915 – William Hearst e o Papel da Mídia no Proibicionismo
Para entender como foi essa difusão por parte da mídia, precisamos falar sobre William Randolph Hearst. Magnata em ascensão que chegou a ser dono de cerca de 28 jornais, o principal veículo de comunicação na década de 1920.
Mas antes disso, em 1915, homens de Pancho Villa, protagonista da Revolução Mexicana, tomaram uma fazenda gigantesca de William no México. Como abordamos no tópico anterior, o fumo era mais popular no país vizinho, sendo o relaxante preferido dos homens de Pancho. A partir desse acontecimento, William retirou as palavras “cannabis” e “hemp” (cânhamo) de seus jornais e se uniu ao movimento de propaganda enganosa contra a planta. Movimento este, que agora já não carregava nomes científicos ou em inglês, mas sim em espanhol: marijuana. Importante frisar que foi nesse momento, com a intenção de associar o consumo de Cannabis aos mexicanos, que começaram a chamar a maconha nos Estados Unidos de marijuana.
1920– Lei Seca Estadunidense
Sob forte influência conservadora na política, o governo estadunidense decretou a Lei Seca, proibindo a produção, venda e distribuição de álcool no país. Obviamente a lei não resultou na diminuição do consumo, e sim criou uma série de problemas sociais, de saúde e segurança pública. Nesse período houve o surgimento dos cartéis que comandavam o tráfico ilegal de álcool, simultaneamente ao aumento de 30% na taxa de homicídios. Sem contar os variados problemas de saúde causados pela falta de controle de qualidade na produção das bebidas.
Esses problemas se parecem com o que vivenciamos no Brasil desde a proibição da Cannabis e o início da disseminação da guerra às drogas promovida pelo governo estadunidense ao redor do mundo. Concorda com isso?
1930- Harry Anslinger e a criação do DEA
Precisamos agora falar de Harry Anslinger, o primeiro (e para muitos, o maior) embaixador das políticas proibicionistas que ainda perduram na maior parte dos países. Em 1930 surgiu o DEA, famoso Departamento Federal de Narcóticos dos Estados Unidos. Anslinger fez fama na guerra contra o ópio e foi escolhido para chefiar o DEA pelo tio de sua esposa, Andrew Mellon.
Do mesmo modo que perseguiu o ópio, Harry, uma pessoa influente, usou o contexto da época para moldar, através de um forte mecanismo de propaganda e influência, a opinião popular sobre a maconha que perdura até os dias de hoje. Como abordamos, ele era da turma que acreditava na proibição das substâncias como forma de controle de massas e a obtenção da ordem social. Tanto é que fazia parte do movimento moralista, muito forte nos Estados Unidos nesse período.
Ao mesmo tempo, a partir da década de 30, investiu-se muitos recursos para, teoricamente, combater as organizações que faziam o comércio da planta, com forte cobertura midiática promovida principalmente por William Hearst. A mídia hegemônica na época se aproveitou do momento para utilizar associações racistas e xenofóbicas às notícias relacionadas à Cannabis, junto de histórias infundadas para assustar a população visando obter apoio popular contra a ganja, como podemos ver na foto abaixo, retirada de um jornal da época.
(SLOMAN, 1979)
(SILVER, 1979)
1932- O Jazz e sua relação histórica com a planta. Lançamento da música “Reefer Man”
O jazz, gênero musical criado e difundido pelos negros, tem uma história intimamente ligada à maconha. Junto com a expansão do Jazz, nascido em Nova Orleans, o consumo inalado da maconha foi ficando cada vez mais conhecido pela opinião pública. Logo, não era incomum que fãs do gênero musical, assim como artistas, consumissem a erva. Se bem entendemos a tática dos proibicionistas, sabemos que os ingredientes para mais uma associação racista e infundada estavam novamente sobre a mesa.
Do mesmo modo, Harry Anslinger, um moralista, via no Jazz o total oposto do que ele defendia e acreditava: a rigidez nos costumes, o conservadorismo, a abstinência. A perseguição ao gênero musical, assim como à população afroamericana seria instaurada em pouco tempo. A prova disso é que posteriormente músicos como Billie Holliday e Louis Armstrong, entre outros, foram perseguidos e chegaram, inclusive, a ficar presos.
https://usnewsbeat.medium.com/racism-weed-jazz-the-true-origins-of-the-war-on-drugs-8e6fd4ef813
1933- Fim da Lei Seca
Fim da lei que proibia o comércio e produção do álcool. Dessa forma, todo o aparato de fiscalização que tinha sido desenvolvido, com uma quantidade significativa de dinheiro investido, precisou ser realocado para uma nova guerra, com um novo inimigo. Você já deve estar imaginando o que vai acontecer daqui pra frente, não é mesmo?
Assim, com toda contextualização explicada, em 1937, aprovaram o Marijuana Tax Act, lei federal estadunidense que instaurou altíssimas taxas sobre a venda de Cannabis. A lei por si só não proibia o consumo da planta, mas sufocava empresas que atuavam nessa indústria.
1937- Marijuana Tax Act e O Início da Proibição Federal da Cannabis nos EUA
Houve pouca resistência na aprovação da lei. Com o Relatório Flexner, não haviam escolas de medicinas alternativas para se opor à medida. Ao mesmo tempo, Roosevelt, presidente na época, tinha fortes conexões com Rockefeller, que por sua vez, como abordamos anteriormente, possuía muitos interesses na proibição do cânhamo, concorrente natural dos produtos derivados de petróleo.
Juntamente com o lobby da indústria do petróleo, outros produtos surgiam no mercado, com altos investimentos de empresas gigantes, como a DuPont. Estamos falando principalmente do nylon, grande concorrente dos produtos têxteis feitos com Cannabis. Assim, a ideia naquele momento era de “proibir o natural e monopolizar o sintético”. Ou seja, não havia interesse em permitir que uma planta com diversas aplicações e de cultivo acessível para qualquer pessoa existisse. Dessa forma, homens brancos donos de empresas que viam seus lucros em risco com a Cannabis, poderiam ficar ainda mais ricos e de quebra teriam uma justificativa para perseguir, prender e matar minorias.
Holland, Julia, O LIVRO DA MACONHA
Conclusão
Enfim, finalizamos essa primeira parte da linha do tempo do proibicionismo. No próximo artigo, vamos falar como essa lei estadunidense se propagou para o mundo inteiro, e os caminhos que nos fizeram chegar à situação atual, na qual o país que criou a guerra às drogas através de teorias racistas e infundadas, lucra bilhões com a planta que, já foi declarada por um ex-presidente, como a inimiga número 1 da nação.
Vale lembrar que o Brasil, mais precisamente a Câmara Municipal do Rio de Janeiro, em 1830, impôs uma lei proibicionista contra a venda e o consumo da Cannabis. A lei conhecida como Lei Pito do Pango definiu que era “proibida a venda e o uso do pito do pango, bem como a conservação dele em casas públicas. Os contraventores serão multados, a saber: o vendedor em 20$000, e os escravos e mais pessoas que dele usarem, em oito dias de cadeia.”
A princípio podemos observar que há quase 200 anos atrás, já havia um recorte étnico dos usuários e uma condenação mais severa a esses que pertenciam à classe econômica mais fragilizada, situação que perdura até hoje. Enquanto os vendedores, que provavelmente eram brancos, tinham condições de pagar a multa pela contravenção e consequentemente teriam sua liberdade garantida, os negros, na época escravos, deveriam cumprir pena na detenção. Isso te lembra histórias que você ouve e até presencia atualmente?
Em conclusão, esperamos que tenha ficado claro quais foram, de fato, os causadores do proibicionismo: uma linha de pensamento extremamente conservadora, moralista e religiosa; a criação e manutenção do monopólio de empresas concorrentes à Indústria da Cannabis; e o racismo explícito, usando as políticas como forma de controle social de populações específicas que não faziam parte da elite financeira.
A Comunidade
Aprender mais sobre isso traz um sentimento de indignação, né? Toda a problemática que vivenciamos hoje em relação às drogas provém dessa construção histórica baseada em mentiras, preconceito e interesses econômicos individuais.
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