Batemos um papo com Renato Filev, que é pai, pesquisador e ativista antiproibicionista, tendo participado da criação da Marcha da Maconha de São Paulo. Nascido na cidade, é formado em ciências biológicas com pós-graduação em neurociência e psiquiatria.
Um pouco sobre o entrevistado
As drogas permeiam meus estudos, meu trabalho como ativista e minha vida pessoal. Em paralelo a minha formação na Universidade, também me tornei ativista antiproibicionista pela denúncia da Guerra às Drogas e essa formação para mim foi a Marcha da Maconha. Através do movimento, eduquei-me e senti a necessidade de atuar em algo que esteja diretamente relacionado relacionasse com toda a questão. Atualmente, na minha área de pesquisa, trabalho com possíveis tratamentos de pessoas que apresentam problema como o transtorno por uso de substâncias.
A Marcha da Maconha
Essa história começou para mim lá em 2005. Eu fazia parte de um fórum voltado para cultivo, o Grow Room, que na época tinha uma aba que chamava Canabis Livre. Dentro dela, existiam salas nas quais a gente discutia sobre temas específicos da legalização, pautando como poderíamos fazer para legalizar a maconha no Brasil. No mesmo período, começou a chegar anúncios da Marcha Global da Maconha, agitando ainda mais os ânimos.
Passados dois anos, em 2007, o pessoal do Rio de Janeiro conseguiu organizar a primeira Marcha da Maconha no país e decidimos fazer o mesmo em São Paulo no ano seguinte. O primeiro encontro de organização foi dentro de uma universidade, formado basicamente por usuários inconformados do fórum.
Começamos atuando por meio de ações diretas na rua, em locais estratégicos para chamar atenção e conseguir disputar a opinião pública sobre o tema. Porém, no dia anterior ao ato recebemos um ofício proibindo a manifestação com a justificativa de que o movimento era uma apologia ao crime e ao criminoso. A mesma coisa aconteceu em 2009, apesar dos nossos esforços.
Entretanto, foi nesse ano que as coisas começaram a mudar. Entendemos que era hora da Marcha se estruturar como movimento social autônomo com princípios bem estabelecidos. Nesse sentido, surgiu o Coletivo D.A.R (Desentorpecendo A Razão) que ajudou na estruturação e fez com que o ato reunisse 500 pessoas no Parque Ibirapuera em 2010.
Na ocasião um manifestante acabou sendo detido simplesmente por portar um cartaz com os dizeres “Não planto, não vendo, não compro, não condeno, legalize já! “. Esse acontecimento foi importante para entendermos como coletivo que era hora de subir para a principal avenida da cidade, a Avenida Paulista.
Chegamos em 2011 com a ideia de negociar com a polícia o que seria permitido ou não durante o ato. Depois da conversa, cobrimos com fita qualquer referência a planta nas roupas e ficou combinado de não entoarmos gritos com a palavra maconha, substituindo-a por pamonha. Assim que começamos a marchar, fomos atingidos por balas de borracha e cacetetes pelas costas.
Quem estava lá foi brutalmente agredido pela polícia, muita gente se machucou ou teve ferimentos graves. Naquela época, as pessoas ainda se preocupavam com as liberdades individuais ou violência policial. Um fotógrafo da Folha que estava fazendo a cobertura também foi agredido e isso impulsionou a exposição do caso na mídia.
Toda essa comoção acabou resultando nas Marchas da Liberdade e ainda no mesmo ano o STF liberou a realização das Marchas da Maconha em todo o país, garantindo assim os direitos constitucionais de reunião e de livre expressão.
Depois desse começo difícil e turbulento, a organização da Marcha e os atos foram crescendo ano após ano, deixando de ser um movimento universitário composto por pessoas privilegiadas para se tornar um movimento diverso.
Olhando para trás, acredito que a criação do Coletivo D.A.R e do Bloco Feminista, a divisão da organização em diferentes alas e o surgimento das marchas periféricas foram estratégias fundamentais que levaram a descentralização da Marcha da Maconha de São Paulo e fizeram com que mais pessoas se identificassem com o movimento, aumentando seu tamanho e representatividade.
Desafios do Caminho e Percepções Para o Futuro
Inicialmente, creio ser acho relevante falar que há 16 anos a opinião pública era ainda menor a nosso favor. Um levantamento recente disse que 25% dos brasileiros são contra criminalizar o uso pessoal, e considerando que os usuários de drogas ilícitas são uma pequena minoria, é relevante ter ¼ da população pensando dessa maneira. Inclusive, li um estudo de psicologia que afirma que o ponto de mudança de uma opinião social é quando tem exatamente essa proporção de pessoas falando sobre ela.
Falando sobre os desafios, acreditamos acho que nossa ousadia ajudou a superar boa parte deles. Como sempre, sofremos perseguição por parte da polícia, a própria forma descentralizada e autônoma que a Marcha atua foi uma resposta para evitar maiores problemas, além de ser um fator determinante para decidirmos tudo através de consensos, como um organismo único que hoje é o maior e mais consistente ato de rua do Brasil ao longo dos anos.
Na perspectiva da política institucional vemos que a onda conservadora que atinge o país atualmente faz com que a pauta das drogas retroceda, sendo atacada por figuras de extrema direita que utilizam de discursos distorcidos da realidade para chamar atenção e ganhar espaço.
Já num contexto e período mais amplo, considero que tivemos avanços. Antigamente não tínhamos nem segurança jurídica pra falar sobre o tema, muito menos pra realizar o ato. No dia da manifestação você tinha que chegar de canto, disfarçando que estava indo pra lá.
Sobre minhas perspectivas para o futuro, sabemos que o Brasil avança de maneira conservadora em tudo desde a sua independência e com as drogas não será diferente. Por outro lado, percebo que o movimento ganhou muita força e a maior delas, a diversidade, sensibiliza e ajuda a trazer parte da opinião pública ao nosso favor.
Nesse sentido, acredito que luta deve seguir os princípios de ser anticapitalista e antiproibicionista (contra a proibição de todas as drogas), atuando a partir da perspectiva dos direitos humanos e da justiça social.
Apesar de todos os desafios, vejo que a Marcha da Maconha tem cumprido seu papel de propor um futuro hoje distante, quase utópico. Como movimento social temos que esgarçar as fronteiras da realidade. Existimos para tensionar, nutrir novas utopias, novas práticas de realidade, de vida, de existência. Não estamos aqui para fazer política institucional, negociar o mínimo, falar o óbvio. A gente quer mais, a gente quer tudo.
Nós, como sociedade civil, temos o poder de canalizar e acelerar agendas, e considero que a Marcha foi fundamental para as conquistas que tivemos até agora. Toda pessoa que acredita em uma nova política de drogas pode conversar com quem está ao seu redor e expor argumentos que sejam capazes de trazê-las a favor dessa causa, pois é possível pensar em uma narrativa que coloque o uso social de drogas hoje ilícitas no mesmo lugar das lícitas, para além de toda a questão do uso medicinal.